Gildo e Raimunda formam um casal jovem, mal entrados nos 30 anos. No entanto, carregam já um triste balanço: três filhos perdidos, dos seis que conceberam. Dona Maria de Fátima também já viu ceifadas as vidas de quatro dos sete filhos que teve. Enquanto tece seu relato, a ribeirinha batalha para compensar a falta do arroz no almoço da família, já que as provisões compradas em agosto ainda não haviam chegado, quatro meses depois do pedido. Na casa de seu Agostinho, situação semelhante acabara com o sal de sua desfalcada despensa.
Os protagonistas das histórias acima têm um denominador comum: são todos moradores do alto da Resex Riozinho do Anfrísio, sofrem as duras consequências de um dificultoso transporte aos centros urbanos, principalmente na época de seca do rio, e confiam que a solução residiria na reabertura de uma antiga estrada que liga o rio às vias dos municípios próximos de Trairão e Itaituba, que já serviu desde caminho para tropas de burro que escoavam a borracha, até como ramal de extração ilegal de madeira. Hoje, esse e outros ramais análogos são utilizados pelos beiradeiros para deslocamento às cidades, mais frequentemente em casos de emergência, o que implica dura caminhada de dois a quatro dias pela mata, com consequente parca possibilidade de transporte de produtos.
Diante desse quadro, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, com apoio do Instituto Socioambiental, levou, entre 2 e 10 de dezembro de 2010, uma equipe de pesquisadores à Resex Riozinho do Anfrísio com o fito de analisar e caracterizar essa demanda de seus moradores. Veja no mapa abaixo os caminhos percorridos.
Dos objetivos da equipe constavam: percorrer o caminho a pé juntamente com moradores da Resex; georreferenciamento do percurso da trilha sobre a qual se demanda a abertura da estrada, com análise planialtimétrica; registro dos usos tradicionais da área; consulta aos moradores da resex, com mapeamento de potenciais benefícios e eventuais ameaças ou prejuízos que a empreitada possa acarretar. A região viu eclodirem, na última década, muitos conflitos fundiários entre grileiros, colonos, ribeirinhos e madeireiros.
|
Parte do grupo na divisa da Resex Riozinho do Anfrísio e Flona Altamira |
No dia 2 de dezembro, a equipe deixou a cidade de Trairão, acompanhada de quatro comunitários da Resex, tomando a estrada que cruza o Projeto de Assentamento Areia até um ponto situado na Flona Trairão, a partir do qual só se transita a pé. Desse local, seguiram-se 36 quilômetros percorridos em dois dias de caminhada mata adentro, até a chegada às margens da porção mais alta do Riozinho do Anfrísio. A trilha é conhecida como “estrada de São Paulo”, e desemboca ao lado da localidade Alto Alegre, a penúltima da Resex.
|
Equipe caminha mata adentro em direção a Alto Alegre |
Ao longo do caminho, os comunitários chamaram a atenção para elementos que indicam a ancestralidade da ocupação, como seringueiras com marcas antigas de extração de látex. No mesmo sentido, entrevistas com moradores mais velhos do Riozinho do Anfrísio descreveram a região como uma intricada teia de colocações seringueiras no início do século, de onde a borracha era escoada pela trilha, em lombo de burro, até os seringalistas do Rio Tapajós. “A borracha ia até Itaituba, via Paraná-Mirim. Era o chamado ‘comboio’”, conta Manoel, conhecido como seu Tiozinho, cujo avô, cearense, veio extrair seringa já nos primeiros anos do século XX. Além disso, foram registrados também pontos de atividade extrativa mais recente, como áreas de retirada de óleo de copaíba, utilizadas nos últimos anos pelos moradores da resex.
Estrada como solução
Findo o trabalho na trilha, o passo seguinte foi a realização de entrevistas individuais em todas as casas da Resex Riozinho do Anfrísio e algumas das casas da Resex do Rio Iriri. Os depoimentos desfiam inúmeros casos de perda de parentes que, doentes, não puderam ser removidos em tempo hábil para atendimento médico. As dificuldades se acentuam no período de estiagem, de junho a novembro, quando o transporte fluvial se torna ainda mais penoso e demorado. Além disso, durante esses meses, os regatões praticamente não circulam, acarretando problemas na venda e aquisição de produtos.
|
De canoa, na chegada ao Riozinho do Anfrísio |
Conforme a equipe descia o Riozinho, distanciando-se do local candidato à reabertura da estrada e aproximando-se da boca do Rio Iriri, o teor dos relatos sofria crescentes modificações. Para os moradores das partes mais baixas do Riozinho, o advento da estrada tinha um apelo reduzido. No entanto, praticamente todos os entrevistados eram unânimes em reconhecer as agruras dos moradores do alto, admitindo a estrada como uma solução benfazeja a seus vizinhos. Reações análogas foram registradas entre os comunitários da Resex do Rio Iriri, também entrevistados pela equipe.
Tensões e incertezas
Se a demanda é notoriamente reconhecida pelos moradores das duas resex, isso não significa que não haja menções de restrições ou reticências. Com os conflitos fundiários ocorridos na última década vivos em suas mentes, alguns moradores manifestaram preocupação com a possibilidade de que a estrada propiciasse o retorno de grileiros, madeireiros ou mesmo a instalação desordenada de novos ocupantes. Para muitos deles, qualquer iniciativa de reabertura deve ser necessariamente acompanhada de ações de fiscalização e controle do ramal, por parte dos próprios moradores e pelo ICMBio.
Outro ponto que suscita incertezas diz respeito à manutenção da estrada, uma vez aberta. Atualmente, a manutenção da estrada que sai da Flona, passa pelo Projeto de Assentamento Areia e depois leva a Trairão – que seria a continuação da estrada demandada pelos comunitários – é feita por fazendeiros da região, muitos dos quais detém terras sobre áreas que vieram a se tornar Unidades de Conservação – Flona, resex ou parque. Com uma eventual saída desses fazendeiros, permanece uma incógnita a questão de quem se encarregaria de manter as vias abertas e funcionais.
Avaliação
As atividades da expedição ao Riozinho do Anfrísio não tiveram a pretensão de dar um veredito final sobre os rumos da estrada, mas, sim, de levantar informações, questões e mapear as demandas e pontos de conflito. O relatório a ser gerado fruto dessa expedição e pesquisas complementares deve ser apresentado ao conselho deliberativo da resex para uma avaliação e encaminhamentos necessários.
Para o gestor da UC, Luis Wagner Guimarães, a reabertura dessa estrada é uma demanda apontada pelos moradores desde a criação da resex e os resultados desse estudo darão subsídios para uma avaliação mais aprofundada dessa demanda. “Essa estrada não deve ser observada apenas pelos riscos ambientais potenciais que apresenta, mas também pelos benefícios sociais e econômicos que pode gerar para os moradores da Resex – agentes chaves na conservação do local”, avalia Guimarães.
Para Marcelo Salazar, coordenador adjunto do Programa Xingu do ISA na Terra do Meio, e que também acompanhou a equipe de pesquisadores na expedição, seja através da estrada, de uma pista de pouso no alto do Riozinho do Anfrísio ou as duas coisas juntas, essa população não pode ser privada mais tempo do acesso as política públicas básicas como assistência a saúde, por exemplo. “Há de se encontrar uma solução que atenda aos ribeirinhos, porém sem expô-los, e à resex, ao roubo de madeira, à grilagem de terras e outros que podem prejudicar suas vidas ou causar o saque de seus recursos naturais”.
(texto de Natalia Guerrero, jornalista e mestranda em Geografia na USP, especial para o ISA e o ICMBio)
Nenhum comentário:
Postar um comentário